sábado, 15 de outubro de 2011

Paulo Freire

"Aprender a dizer a sua palavra"

Publicado por baitasar

"Talvez seja este o sentido mais exato da alfabetização: aprender a escrever sua vida, como autor e testemunha da sua história, isto é, biografar-se, existenciar-se, historicizar-se. Por isto, a pedagogia de Paulo Freire, sendo método de alfabetização, tem como ideia animadora toda a amplitude humana da "educação como prática da liberdade', o que, em regime de dominação, só se pode produzir e desenvolver na dinâmica de uma 'pedagogia do oprimido'." Professor Ernani Maria Fiori

       Freire, Paulo
F934p     Pedagogia do oprimido, 17ª ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987




SONHOS E UTOPIAS DA PEDAGOGIA DO OPRIMIDO II

 Paulo Freire alerta: Precisamos aprender a dizer a nossa palavra. Segundo o Professor Ernani Maria Fiori “a prática só encontrará adequada expressão numa pedagogia em que o oprimido tenha condições de, reflexivamente, descobrir-se e conquistar-se como sujeito de sua história”. Assim, o sentido mais exato da alfabetização de Paulo Freire seria: aprender a escrever a sua vida, como autor e como testemunha de sua história, isto é, biografar-se, existenciar-se e historizar-se. Alfabetizar é conscientizar.

 Nos tantos anos de Pedagogia do Oprimido, ainda são válidas as primeiras palavras de Paulo Freire em sua dedicatória, a saber: “Aos esfarrapados do mundo e aos que nele se descobrem e, assim descobrindo-se com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles lutam”, e continua confiante, “ao descobrir-me ingênuo, comecei a tornar-me critico”.

 Podemos justificar a Pedagogia do Oprimido como válida para nossos dias de efervescência de um neoliberalismo e de novos métodos de ensino? Penso que sim. Os oprimidos, apesar da categoria se encontrar em desuso, continuam existindo e sendo explorados pelas relações materiais do capitalismo. Além disso, não podemos esquecer que a pedagogia do oprimido retrata duas realidades, a saber: opressor e oprimidos enquanto luta de classes entre dominantes e dominados.
 Paulo Freire, em sua perspectiva dialógica, aborda eixos temáticos na pedagogia do oprimido a partir de dados concretos da realidade social e educacional ainda válidas para o século XXI, entre elas destaco:
  • Medo da liberdade: nos oprimidos o medo da liberdade é o medo de assumi-la. Nos opressores, é o medo de perder a “liberdade” de oprimir;
  • Quando se torna “um novo homem” tende a ser opressor;
  • Falsa generosidade: os opressores falsamente generosos têm necessidade, para que sua “generosidade” continue tendo oportunidade de realizar-se, da permanência da injustiça. A “ordem” social injusta é a fonte geradora, permanente desta “generosidade” que se nutre da morte, do desalento e da miséria.
  • A auto-desvalia: característica dos oprimidos por acharem que são incapazes de produzir conhecimentos.
  • Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho. Os homens se libertam em comunhão”.
 A pedagogia do oprimido tem como objetivo central a libertação do homem, na luta incessante da recuperação de sua humanidade. Para isso, Paulo Freire tenta “mobilizar seus leitores para as reflexões e para as pretensões de mudanças sociais e patéticas”.

 Quanto mais analisamos as relações educador – educando, na escola, em qualquer de seus níveis (ou fora dela), parece-nos que são relações de caráter especial e marcante – o de serem relações fundamentalmente narradoras, dissertadores. Na visão “bancária” da educação, em que a única margem de ação que se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los, sua solução estaria em deixarem a condição de ser “seres fora de” cedo ou tarde, os próprios “depósitos” podem provocar um confronto com a realidade em definir se lhe fala como estático, pode despertá-lo como contradição de si mesmo e da realidade.

 A educação “bancária”, em cuja prática se dá a inconciliação educador – educandos rechaça este companheirismo. E é lógico que seja assim. No momento em que o educador “bancário” vive a superação da contradição já não seria mais “bancário”, já não mais faria depósitos, já não mais tentaria domesticar, já não mais prescrevia. Estaria na busca por entender e compreender que o saber dar-se-ia quando estes soubessem com ele, esta seria sua tarefa. Já não mais estaria a serviço da desumanização, a serviço da opressão, mas, a serviço da libertação. 

A concepção do saber do bancarismo é no fundo uma concepção alimentícia do conhecimento. É como se fosse “o alimento” que o professor vai introduzindo nos educandos, numa espécie de tratamento de engorda. Mas, se para a concepção bancária a consciência é, em sua relação com o mundo, esta “peça” passivamente escancarada a ele, à espera de que entre nela, corretamente concluirá que ao educador não cabe nenhum outro papel que não o de disciplinar a entrada do mundo nos educandos. 

Para manter a contradição, a concepção bancária nega a dialogicidade como essência da educação e se faz antidialógica para realizar a superação, a educação problematizadora que – situação gnosiológica – afirma a dialogicidade e se faz dialógica. É através deste que se opera a superação da qual resulta um termo novo: educador-educando como educando-educador. Dessa maneira, o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa é educado, em diálogo com o educando que ao ser educado, também educa. Ambos tornam-se sujeitos do processo em que crescem juntas e em que os “argumentos de autoridade” não valem. A questão da autoridade não suprimiu o maior direito de todos, o da liberdade.

Agora, ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens e mulheres se educam em comunhão mediatizados pelo mundo. Segundo Paulo Freire “a consciência e o mundo... se dão ao mesmo tempo: exterior por essência a consciência, o mundo é, por essência, relativo a ela”. A concepção e a prática bancária, imobilista, fixista, terminam por desconhecer os homens como seres históricos, enquanto a problematizadora parte exatamente do caráter histórico e da historicidade dos homens.

A visibilidade deve aparecer aos homens como desafio. Esta busca do “ser mais” não pode realizar-se no isolamento, no individualismo, mas na comunhão, na solidariedade dos existires. Por isso, é que esta educação, em que os educadores e educandos se fazem sujeitos do seu processo, superando o intelectualismo alienante, superando o autoritarismo do educador bancário (se é que existe educador ou educadora que sejam bancários), supera também a falsa consciência do mundo. O mundo agora já não é algo sobre que se fala com falsas palavras, mas o mediatizador dos sujeitos da educação e a incidência da ação transformadora dos homens, de que resulte a sua humanização.

A importância do diálogo entre educador e educando para a construção de um saber prático de libertação foi a grande intenção do pensamento de Paulo Freire. Dizer a palavra verdadeira é transformar o mundo, o mundo no qual o educando está inserido. A palavra possui duas dimensões: ação e reflexão. A existência humana, não pode ser muda, silenciosa, nem nutrir-se de falsas palavras. Mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo. Existir humanamente é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, volta-se problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciamento. Torna a exigir deles uma consciência critica, histórica, política e social. Assim, dizer a palavra não é privilégio de alguns homens, mas direito de todos os homens e mulheres.

 No método de alfabetização de Paulo Freire há um estudo da realidade do educando. Nesse processo surgem os temas geradores extraídos da problematização da prática de vida dos educandos, ou seja, os conteúdos são extraídos a partir da realidade e do modo de vida dos educandos. Para Paulo Freire, a transmissão de conteúdos estruturados fora do contexto social do educando é considerada “invasão cultural” ou depósito de informações, a chamada educação bancária.

 A investigação temática que se dá no domínio do humano e não nos das coisas, não pode reduzir-se a um ato mecânico, sendo processo de busca, de conhecimento. Por isto tudo, como ato de criação, exige de seus sujeitos que vão descobrindo, no encadeamento dos temas significativos a interpretação dos problemas. A investigação se fará tão mais pedagógica quanto mais crítica for. Neste sentido, investigadores profissionais e povo, nesta investigação do tema gerador, são ambos sujeitos desse processo. Toda investigação temática de caráter conscientizado se faz como ato pedagógico e toda autêntica educação se faz na investigação do pensar, ou seja, “quanto mais investigo o pensar do povo com ele, tanto mais nos educamos juntos... quanto mais nos educamos, tanto mais continuamos investigando”.

 A conscientização não pára estoicamente no reconhecimento puro das coisas, no caráter subjetivo, da situação, mas, pelo contrário, prepara os homens e mulheres no plano da ação para a luta contra os obstáculos à sua humanização. Na “codificação” se procura retotalizar o tema cindido na representação de situações existenciais. Na “decodificação” os indivíduos cindidos à codificação como totalidade, aprendem o tema nela implícitos ou a ela referidos. Este processo de decodificação que se dará por meio da dialeticidade, não morre na cisão, que realizam na codificação como totalidade temática, completando-se na retotalização de uma totalidade cindida, com que não apenas a compreendem mais claramente, mas também vão percebendo as relações com outras situações codificadas, todas elas representações de situações existenciais.

 Os homens são seres da práxis, seu fazer é ação e reflexão, é transformação do mundo, diferentemente dos animais. No entanto, como afirma Lênin que não há revolução com verbalismos, nem tampouco com ativismo. A práxis revolucionária somente pode opor-se à práxis das elites dominadoras. Neste sentido, o antidialógico se impõe ao opressor na situação objetiva da opressão para oprimir mais pela conquista, não exclusivamente econômica, mas cultural, roubando do oprimido conquistado sua palavra também, sua expressividade e sua cultura.

 As elites dominadoras de hoje ainda, como as de todos os tempos, continuam precisando da conquista como uma espécie de “pecado original”, com “pão e circo” ou sem eles. O que interessa ao opressor é enfraquecer os oprimidos mais do que já estão, ilhados, criando e aprofundando cisões entre eles, através de vários métodos e processos.

 A manipulação tem de anestesiar as massas populares para que não pensem. O antídoto a esta manipulação dominadora está na organização criticamente consciente, na problematização da realidade nacional e da própria manipulação. A invasão cultural é antidialógica, tática de dominação, de violência e de alienação. Esta é uma forma de dominar econômica e culturalmente o invadido. A ação dialógica exige o desvelamento do mundo, ação cultural dos oprimidos e organização na luta para a transformação da realidade. Por isso, somente com isso, poderemos continuar sonhando e tendo a firme esperança de uma Pedagogia do Oprimido para o século XXI.

Claudemiro Godoy do Nascimento
Filósofo e Teólogo. Mestre em Educação pela Unicamp. Doutorando em Educação pela UnB. Professor da Universidade Estadual de Goiás – UEG.

E-mail: claugnas@terra.com.br

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